Barulho
De repente me lembrei hoje do quanto eu gosto do Jesus and Mary Chain. E pensei em colocar aqui matéria que fiz para a Bizz de dezembro sobre os 20 anos do Psychocandy. Não sou muito a favor dessas coisas (publicar no blog coisas que saíram em revistas), mas já faz tantos meses que nesse caso acho que não tem problema.
***
James McLeish Reid é um cara tímido. Cansado da agitação de Londres, mora hoje no interior da Inglaterra com esposa e uma filha pequena e ocupa seu tempo fazendo reparos na casa e andando pelo campo. De fala mansa, risada amistosa e um princípio de calvície, o jovem senhor de 44 anos entorna pints de cerveja com a regularidade e a resistência de um profissional. Tem um irmão mais velho, William Adam, um branquelo recluso e arredio que por amor a uma americana foi morar sob o sol forte da Califórnia, onde cria um filho e um afilhado. E para o seu bem é melhor que fique lá. Porque, se separados por um oceano e um continente eles conseguem passar por respeitáveis pais de família, quando colidem, os Reid desencadeiam explosões de energia extraordinárias porém arrasadoras, que os joga num ciclo quase incontrolável de autodestruição.
Foi assim desde que saíram de East Kilbride, ao sul de Glasgow, levando apenas um protótipo de banda e um emaranhado de idéias sobre um som e uma atitude. Para contar o que aconteceu a partir daí é preciso relembrar histórias de tumultos, surras dadas e recebidas, prisões, porres homéricos resultando em shows desastrosos e músicas banidas do rádio e da TV por conteúdo impróprio (apologia ao uso de drogas, blasfêmia). E, no meio disso tudo, um pouco da música mais influente das duas últimas décadas. Pelo menos um de seus discos tem presença obrigatória em qualquer lista dos mais importantes da música pop: o primeiro deles, Psychocandy, uma porrada sonora que acaba de completar vinte anos.
O modo cristão de explicar a falta de sorte seria encará-la como castigos pelos pecados cometidos nos quinze anos de carreira. A começar pelo nome, The Jesus and Mary Chain, uma provocação que os Reid nunca tiveram interesse em explicar. Mas a lista não pára aí.
A Preguiça
No começo dos anos 80, Jim e William viviam do seguro desemprego e passavam os dias jogados no sofá, deixando muito tempo correr até que resolveram começar a se mexer. O mola propulsora foi o desgosto com o estado da música, cheia de novos românticos e pop ordinário. Tivesse havido um único bom disco de rock lançado naquela época, eles costumam dizer, teriam atravessado a vida em frente à tevê.
Não sabiam tocar nada. Fazer aulas estava fora de questão – dava muito trabalho e ia contra tudo aquilo que eles tinham aprendido com o punk –, então simplesmente compraram guitarras e saíram para formar bandas, cada um para o seu lado. William errou pela cidade, enquanto Jim logo se uniu a um colega de escola, Douglas Hart, que aplicava em seu baixo a mesma tentativa de autodidatismo. Depois de quebrarem a cabeça durante alguns meses, os Reid perceberam que vinham desde o princípio correndo atrás da mesma idéia de banda e de música e resolveram que deveriam buscá-las juntos. Douglas foi na cola. “Nossas primeiras demos pareciam com alguma coisa dos Ramones, mas tanto quanto gostávamos de Ramones nós queríamos encontrar nosso próprio som e criar alguma coisa nova, única”, lembra Jim. Estamos entrando em 1984.
Bobby Gillespie, grande fã de Syd Barrett, um dia emprestou uma fita de Barrett com um amigo. Desavisado, encontrou em um dos lados do cassete algumas daquelas gravações demo. Não tardaria para que ele assumisse as baquetas do Mary Chain e, ato contínuo, ligasse para um antigo conhecido na tentativa de marcar alguns shows. Era Alan McGee, que nessa época gerenciava um clube e dava os primeiros passos com o seu próprio selo chamado Creation.
O primeiro show na capital inglesa aconteceu em junho daquele ano, no Living Room de McGee. “Eles fizeram um barulho incrivelmente demente, era inacreditável que alguém gostasse daquilo e, mais do que isso, pudesse pensar em trabalhar com eles”, ele conta. “E eles eram todos loucos. Loucos quietos, mas loucos”. Alan, tão louco quanto, tornou-se agente da banda.
A Ira
A essa altura, a sonoridade do J&MC já estava moldada. Era uma combinação de melodias do pop mais doce anos 60 com uma bateria minimalista, aprendida com o Velvet Underground, letras alternando entre melancolia profunda e raiva pulsante, obcecadas por sexo e amores doentios e guitarras fazendo um barulho assustador. Distorção e microfonia beirando o insuportável.
Suas apresentações duravam cerca de 15 minutos. Porque a banda tinha poucas músicas e nenhuma delas passava dos três minutos, para criar frisson e cair fora antes que as pessoas se entediassem e para garantir a integridade física da platéia – ninguém seria capaz de agüentar tamanha selvageria sonora durante muito tempo sem sofrer danos sérios em sua audição.
Resultado de suas limitações como músicos, dificuldades que eles souberam transformar em uma estética das mais fascinantes. Os Reid colocaram em prática a troca da técnica pela criatividade em um grau poucas vezes vistos. Tinham tudo para ser taxados de amadores e enxotados de volta para casa, mas eles também tinham canções.
A primeira, “Upside Down”, ganhou as ruas em novembro. O single foi gravado em uma noite. “Eles sabiam o que estavam fazendo, tinham uma idéia muito clara do que queriam para sua música, mas não sabiam direito como fazer e essa gravação é resultado disso. Eu e William ficávamos atrás do engenheiro dando palpites e pressionando para que ele fizesse o que queríamos”, McGee lembra com ar de divertimento na voz. Lançado pela Creation, vendeu 35 mil cópias e botou a imprensa em estado de alerta. A falação chegou ao Brasil, e em seguida veio a música. Zé Antônio Algodoal, guitarrista da banda Pin Ups, lembra da primeira vez que ouviu o single: “Nunca tinha ouvido algo tão sujo”.
O artifício usado para conseguir tal façanha virou lenda com o passar dos anos. William teria comprado pedais japoneses, raros na Inglaterra, por uma bagatela. Em uma entrevista à revista Select em 1992 ele conta: “Quando eu liguei aquele pedal, não precisei nem tocar na guitarra que ele foi sozinho fazendo ppkkhhwwhhkkhhpppwwhhhkkkhh!! Ele estava quebrado, completamente ferrado. Eu descobri quando tentei revendê-lo um tempo depois. Mas o barulho que ele fez... Foi quase como se outra pessoa tivesse entrado para a banda. Toda a nossa carreira gira em torno daquele pedal”.
Mesmo hoje, Jim não entrega o segredo e também não desfaz a lenda, apesar de não confirmá-la: “Tinha alguns pedais que pareciam quebrados, mas faziam um barulho infernal, e como o barulho era o nome do jogo nós usamos eles, quebrados ou não. Teríamos usado qualquer coisa para conseguir o nível certo de distorção”.
A Ambição
Aproveitando a atenção, William e Jim abandonaram a Creation para tentar o velho ideal de lutar contra o sistema de dentro para fora. No caso, de dentro do selo Blanco Y Negro, co-dirigido por Geoff Travis (do selo Rough Trade), mas subordinado à Warner. Entre fevereiro e setembro de 85, três singles foram lançados. O álbum veio em novembro.
“Psychocandy foi planejado por William e eu um ano ou dois antes dele começar a ser gravado”, conta Jim. “Mas o disco que planejamos era bem diferente do que existe de verdade, porque nós nunca tínhamos estado em um estúdio, não sabíamos o que era possível de ser feito”. E mesmo diante disso, para desespero da gravadora, a banda fez questão de se autoproduzir. “Mas um bom engenheiro era essencial”, pondera. Para ocupar a vaga, escolheram John Loder.
Durante um mês, trabalharam nas quinze canções do álbum e alguns lados B. E apesar da produção e composições serem assinadas apenas pelos dois irmãos, Hart e Gillespie foram peças importantes. “Idéias não eram necessárias nesse estágio, já que William e eu tínhamos uma boa noção do que estávamos fazendo, mas Douglas e Bobby eram uma parte essencial da banda. Era como se nós quatro estivéssemos ligados na mesma freqüência, ninguém precisava receber ordens ou instruções. A gente quase conseguia ler os pensamentos uns dos outros”, recorda o Reid mais novo.
Psychocandy era uma carta de intenções já na abertura de “Just Like Honey”, que emula a introdução do clássico pop “Be My Baby” de Phil Spector sendo cortada por um riff sujíssimo. E na rebeldia juvenil de “Never Understand” e “The Living End”, nas metáforas violentas usadas para falar de amor, na voz suave de Jim que passeia por versos como “eu serei seu brinquedo” enquanto o mundo parece se acabar em ruídos ao seu redor. Referências a drogas e afrontas a Deus e Jesus apareciam aqui e ali, no disco e nos singles lançados nos meses seguintes.
O plano era dominar o mundo e ensinar às pessoas de bem que música pop pode ser de qualidade. Tocar em estádios e liderar as paradas era o mínimo esperado. Sonhos ingênuos demais quando o que se tinha em mãos era um disco que desafiava o ouvinte. Poucas pessoas prestaram atenção no potencial pop do álbum, latente por trás das paredes de guitarra. Zé Antônio Algodoal confessa que a princípio também se deixou enganar: “Quando ouvi o disco pelas primeiras vezes, o que surpreendeu foi aquele monte de microfonias. Só depois, com o tempo, a gente foi percebendo as nuances, a melodia”.
A Inveja
Psychocandy foi incompreendido e subestimado pelo grande público, porém abraçado entusiasticamente por certos grupos e pela crítica musical. “Foi importante que um disco como esse tenha sido feito naquele momento. Ele mostrou para qualquer um que era possível fazer música mesmo se você não soubesse tocar música”, acredita Jim.
A mensagem foi entregue aos destinatários certos. Primeiro viria o My Bloody Valentine explorar as possibilidades do white noise. Na virada da década, a Inglaterra seria tomada por bandas de guitarras distorcidas que, devido ao comportamento estático no palco, foram chamados de shoegazers.
No Brasil, a influência foi quase imediata. “Cerca de seis meses depois já existiam bandas no país tentando soar como eles, mas era impossível chegar naquela mesma sonoridade. A gente tentava ganhar em volume. Eu misturava dois pedais de distorção com um wha-wha, por exemplo. Chegava próximo, mas não tinha como igualar. Então ia mais pelo conceito de mixagem, na coisa de enterrar a voz e no timbre de bateria do que na guitarra”, relata Algodoal. Eram bandas como Killing Chainsaw, além dos Pin Ups, sempre no underground. “Algumas pessoas mais antenadas do mainstream até ouviam e gostavam, mas era uma sonoridade muito difícil de vender”.
Recentemente uma nova leva de bandas surgiu focada na sonoridade J&MC, Raveonettes e Black Rebel Motorcycle Club à frente, e Sofia Coppola usou “Just Like Honey” na trilha do filme “Encontros e Desencontros”. Mas o rock lhes deve muito mais do que isso. Alan McGee resume bem: “Se não fosse o Mary Chain, não existiria o Stones Roses, e sem os Roses não existiria o Oasis, e sem Oasis não teríamos o Libertines e por aí vai, não pára mais”.
O mais surpreendente dessa história é que, apesar das drogas, bebidas, insolências e blasfêmias, todos sobreviveram. Bobby Gillespie deixou a banda logo depois do lançamento do Psychocandy para se dedicar ao Primal Scream. Douglas perdurou por quase uma década para então trocar a carreira de baixista pela de diretor de video-clipes dos artistas da Creation. A relação de Jim and William durou, aos trancos, até 1998, quando finalmente implodiu em cima do palco em Los Angeles, durante a turnê do álbum Munki. William lançou trabalhos solo que ficavam entre o experimental e o constrangedor, gerando rumores de problemas psiquiátricos. Jim formou uma banda – Freeheat – que produziu pouco e não deu em nada, e acaba de lançar um single solo, “Song For a Secret”, uma balada no estilo do J&MC dos últimos anos. No lado B, há uma canção composta por William e cantada pela irmã caçula da família, Linda Reid. Boatos de uma volta da banda tentaram nascer daí, mas nem o NME conseguiu vender essa idéia de forma convincente. Reunir esses irmãos ainda parece uma piada sem graça.
“Naqueles tempos do Psychocandy, minha relação com o William era muito boa, nós quase sempre concordávamos nas questões relacionadas à música, sobre como o disco devia ser. Acontecia de a gente discutir, mas eram brigas sobre coisas que realmente importavam, e dez minutos depois nós estávamos rindo juntos. Após alguns anos, nós brigávamos por qualquer coisa, como se café era melhor do que chá, e ficávamos sem nos falar durante meses por causa disso”. Jim não parece ter saudade.
Como nunca foram queridos pela indústria, mantendo sempre o máximo de independência e distanciamento possível, o aniversário do Psychocandy passou em branco. Está programada apenas para o ano que vem uma reedição do álbum. A única mudança certa até agora é a exclusão de “Some Candy Talking”, faixa que não fazia parte do disco, incluída no álbum a partir de 1986 por insistência da gravadora.
Talvez então ele seja redescoberto, talvez seja adotado por uma nova geração e receba mais um pouco do reconhecimento que merece. O pacato Jim esquece a casa no campo por poucos segundos e viaja em direção ao passado, lembra do hype, das apresentações bombásticas, das músicas que marcaram mais vidas do que se pode contar, e conclui, calmamente: “Já faz vinte anos que lançamos esse disco e eu ainda estou aqui falando sobre ele com você. A maioria dos álbuns não dura vinte dias, imagina vinte anos. Isso deve significar alguma coisa”. Algumas vezes a modéstia devia ser considerada um pecado.
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James McLeish Reid é um cara tímido. Cansado da agitação de Londres, mora hoje no interior da Inglaterra com esposa e uma filha pequena e ocupa seu tempo fazendo reparos na casa e andando pelo campo. De fala mansa, risada amistosa e um princípio de calvície, o jovem senhor de 44 anos entorna pints de cerveja com a regularidade e a resistência de um profissional. Tem um irmão mais velho, William Adam, um branquelo recluso e arredio que por amor a uma americana foi morar sob o sol forte da Califórnia, onde cria um filho e um afilhado. E para o seu bem é melhor que fique lá. Porque, se separados por um oceano e um continente eles conseguem passar por respeitáveis pais de família, quando colidem, os Reid desencadeiam explosões de energia extraordinárias porém arrasadoras, que os joga num ciclo quase incontrolável de autodestruição.
Foi assim desde que saíram de East Kilbride, ao sul de Glasgow, levando apenas um protótipo de banda e um emaranhado de idéias sobre um som e uma atitude. Para contar o que aconteceu a partir daí é preciso relembrar histórias de tumultos, surras dadas e recebidas, prisões, porres homéricos resultando em shows desastrosos e músicas banidas do rádio e da TV por conteúdo impróprio (apologia ao uso de drogas, blasfêmia). E, no meio disso tudo, um pouco da música mais influente das duas últimas décadas. Pelo menos um de seus discos tem presença obrigatória em qualquer lista dos mais importantes da música pop: o primeiro deles, Psychocandy, uma porrada sonora que acaba de completar vinte anos.
O modo cristão de explicar a falta de sorte seria encará-la como castigos pelos pecados cometidos nos quinze anos de carreira. A começar pelo nome, The Jesus and Mary Chain, uma provocação que os Reid nunca tiveram interesse em explicar. Mas a lista não pára aí.
A Preguiça
No começo dos anos 80, Jim e William viviam do seguro desemprego e passavam os dias jogados no sofá, deixando muito tempo correr até que resolveram começar a se mexer. O mola propulsora foi o desgosto com o estado da música, cheia de novos românticos e pop ordinário. Tivesse havido um único bom disco de rock lançado naquela época, eles costumam dizer, teriam atravessado a vida em frente à tevê.
Não sabiam tocar nada. Fazer aulas estava fora de questão – dava muito trabalho e ia contra tudo aquilo que eles tinham aprendido com o punk –, então simplesmente compraram guitarras e saíram para formar bandas, cada um para o seu lado. William errou pela cidade, enquanto Jim logo se uniu a um colega de escola, Douglas Hart, que aplicava em seu baixo a mesma tentativa de autodidatismo. Depois de quebrarem a cabeça durante alguns meses, os Reid perceberam que vinham desde o princípio correndo atrás da mesma idéia de banda e de música e resolveram que deveriam buscá-las juntos. Douglas foi na cola. “Nossas primeiras demos pareciam com alguma coisa dos Ramones, mas tanto quanto gostávamos de Ramones nós queríamos encontrar nosso próprio som e criar alguma coisa nova, única”, lembra Jim. Estamos entrando em 1984.
Bobby Gillespie, grande fã de Syd Barrett, um dia emprestou uma fita de Barrett com um amigo. Desavisado, encontrou em um dos lados do cassete algumas daquelas gravações demo. Não tardaria para que ele assumisse as baquetas do Mary Chain e, ato contínuo, ligasse para um antigo conhecido na tentativa de marcar alguns shows. Era Alan McGee, que nessa época gerenciava um clube e dava os primeiros passos com o seu próprio selo chamado Creation.
O primeiro show na capital inglesa aconteceu em junho daquele ano, no Living Room de McGee. “Eles fizeram um barulho incrivelmente demente, era inacreditável que alguém gostasse daquilo e, mais do que isso, pudesse pensar em trabalhar com eles”, ele conta. “E eles eram todos loucos. Loucos quietos, mas loucos”. Alan, tão louco quanto, tornou-se agente da banda.
A Ira
A essa altura, a sonoridade do J&MC já estava moldada. Era uma combinação de melodias do pop mais doce anos 60 com uma bateria minimalista, aprendida com o Velvet Underground, letras alternando entre melancolia profunda e raiva pulsante, obcecadas por sexo e amores doentios e guitarras fazendo um barulho assustador. Distorção e microfonia beirando o insuportável.
Suas apresentações duravam cerca de 15 minutos. Porque a banda tinha poucas músicas e nenhuma delas passava dos três minutos, para criar frisson e cair fora antes que as pessoas se entediassem e para garantir a integridade física da platéia – ninguém seria capaz de agüentar tamanha selvageria sonora durante muito tempo sem sofrer danos sérios em sua audição.
Resultado de suas limitações como músicos, dificuldades que eles souberam transformar em uma estética das mais fascinantes. Os Reid colocaram em prática a troca da técnica pela criatividade em um grau poucas vezes vistos. Tinham tudo para ser taxados de amadores e enxotados de volta para casa, mas eles também tinham canções.
A primeira, “Upside Down”, ganhou as ruas em novembro. O single foi gravado em uma noite. “Eles sabiam o que estavam fazendo, tinham uma idéia muito clara do que queriam para sua música, mas não sabiam direito como fazer e essa gravação é resultado disso. Eu e William ficávamos atrás do engenheiro dando palpites e pressionando para que ele fizesse o que queríamos”, McGee lembra com ar de divertimento na voz. Lançado pela Creation, vendeu 35 mil cópias e botou a imprensa em estado de alerta. A falação chegou ao Brasil, e em seguida veio a música. Zé Antônio Algodoal, guitarrista da banda Pin Ups, lembra da primeira vez que ouviu o single: “Nunca tinha ouvido algo tão sujo”.
O artifício usado para conseguir tal façanha virou lenda com o passar dos anos. William teria comprado pedais japoneses, raros na Inglaterra, por uma bagatela. Em uma entrevista à revista Select em 1992 ele conta: “Quando eu liguei aquele pedal, não precisei nem tocar na guitarra que ele foi sozinho fazendo ppkkhhwwhhkkhhpppwwhhhkkkhh!! Ele estava quebrado, completamente ferrado. Eu descobri quando tentei revendê-lo um tempo depois. Mas o barulho que ele fez... Foi quase como se outra pessoa tivesse entrado para a banda. Toda a nossa carreira gira em torno daquele pedal”.
Mesmo hoje, Jim não entrega o segredo e também não desfaz a lenda, apesar de não confirmá-la: “Tinha alguns pedais que pareciam quebrados, mas faziam um barulho infernal, e como o barulho era o nome do jogo nós usamos eles, quebrados ou não. Teríamos usado qualquer coisa para conseguir o nível certo de distorção”.
A Ambição
Aproveitando a atenção, William e Jim abandonaram a Creation para tentar o velho ideal de lutar contra o sistema de dentro para fora. No caso, de dentro do selo Blanco Y Negro, co-dirigido por Geoff Travis (do selo Rough Trade), mas subordinado à Warner. Entre fevereiro e setembro de 85, três singles foram lançados. O álbum veio em novembro.
“Psychocandy foi planejado por William e eu um ano ou dois antes dele começar a ser gravado”, conta Jim. “Mas o disco que planejamos era bem diferente do que existe de verdade, porque nós nunca tínhamos estado em um estúdio, não sabíamos o que era possível de ser feito”. E mesmo diante disso, para desespero da gravadora, a banda fez questão de se autoproduzir. “Mas um bom engenheiro era essencial”, pondera. Para ocupar a vaga, escolheram John Loder.
Durante um mês, trabalharam nas quinze canções do álbum e alguns lados B. E apesar da produção e composições serem assinadas apenas pelos dois irmãos, Hart e Gillespie foram peças importantes. “Idéias não eram necessárias nesse estágio, já que William e eu tínhamos uma boa noção do que estávamos fazendo, mas Douglas e Bobby eram uma parte essencial da banda. Era como se nós quatro estivéssemos ligados na mesma freqüência, ninguém precisava receber ordens ou instruções. A gente quase conseguia ler os pensamentos uns dos outros”, recorda o Reid mais novo.
Psychocandy era uma carta de intenções já na abertura de “Just Like Honey”, que emula a introdução do clássico pop “Be My Baby” de Phil Spector sendo cortada por um riff sujíssimo. E na rebeldia juvenil de “Never Understand” e “The Living End”, nas metáforas violentas usadas para falar de amor, na voz suave de Jim que passeia por versos como “eu serei seu brinquedo” enquanto o mundo parece se acabar em ruídos ao seu redor. Referências a drogas e afrontas a Deus e Jesus apareciam aqui e ali, no disco e nos singles lançados nos meses seguintes.
O plano era dominar o mundo e ensinar às pessoas de bem que música pop pode ser de qualidade. Tocar em estádios e liderar as paradas era o mínimo esperado. Sonhos ingênuos demais quando o que se tinha em mãos era um disco que desafiava o ouvinte. Poucas pessoas prestaram atenção no potencial pop do álbum, latente por trás das paredes de guitarra. Zé Antônio Algodoal confessa que a princípio também se deixou enganar: “Quando ouvi o disco pelas primeiras vezes, o que surpreendeu foi aquele monte de microfonias. Só depois, com o tempo, a gente foi percebendo as nuances, a melodia”.
A Inveja
Psychocandy foi incompreendido e subestimado pelo grande público, porém abraçado entusiasticamente por certos grupos e pela crítica musical. “Foi importante que um disco como esse tenha sido feito naquele momento. Ele mostrou para qualquer um que era possível fazer música mesmo se você não soubesse tocar música”, acredita Jim.
A mensagem foi entregue aos destinatários certos. Primeiro viria o My Bloody Valentine explorar as possibilidades do white noise. Na virada da década, a Inglaterra seria tomada por bandas de guitarras distorcidas que, devido ao comportamento estático no palco, foram chamados de shoegazers.
No Brasil, a influência foi quase imediata. “Cerca de seis meses depois já existiam bandas no país tentando soar como eles, mas era impossível chegar naquela mesma sonoridade. A gente tentava ganhar em volume. Eu misturava dois pedais de distorção com um wha-wha, por exemplo. Chegava próximo, mas não tinha como igualar. Então ia mais pelo conceito de mixagem, na coisa de enterrar a voz e no timbre de bateria do que na guitarra”, relata Algodoal. Eram bandas como Killing Chainsaw, além dos Pin Ups, sempre no underground. “Algumas pessoas mais antenadas do mainstream até ouviam e gostavam, mas era uma sonoridade muito difícil de vender”.
Recentemente uma nova leva de bandas surgiu focada na sonoridade J&MC, Raveonettes e Black Rebel Motorcycle Club à frente, e Sofia Coppola usou “Just Like Honey” na trilha do filme “Encontros e Desencontros”. Mas o rock lhes deve muito mais do que isso. Alan McGee resume bem: “Se não fosse o Mary Chain, não existiria o Stones Roses, e sem os Roses não existiria o Oasis, e sem Oasis não teríamos o Libertines e por aí vai, não pára mais”.
O mais surpreendente dessa história é que, apesar das drogas, bebidas, insolências e blasfêmias, todos sobreviveram. Bobby Gillespie deixou a banda logo depois do lançamento do Psychocandy para se dedicar ao Primal Scream. Douglas perdurou por quase uma década para então trocar a carreira de baixista pela de diretor de video-clipes dos artistas da Creation. A relação de Jim and William durou, aos trancos, até 1998, quando finalmente implodiu em cima do palco em Los Angeles, durante a turnê do álbum Munki. William lançou trabalhos solo que ficavam entre o experimental e o constrangedor, gerando rumores de problemas psiquiátricos. Jim formou uma banda – Freeheat – que produziu pouco e não deu em nada, e acaba de lançar um single solo, “Song For a Secret”, uma balada no estilo do J&MC dos últimos anos. No lado B, há uma canção composta por William e cantada pela irmã caçula da família, Linda Reid. Boatos de uma volta da banda tentaram nascer daí, mas nem o NME conseguiu vender essa idéia de forma convincente. Reunir esses irmãos ainda parece uma piada sem graça.
“Naqueles tempos do Psychocandy, minha relação com o William era muito boa, nós quase sempre concordávamos nas questões relacionadas à música, sobre como o disco devia ser. Acontecia de a gente discutir, mas eram brigas sobre coisas que realmente importavam, e dez minutos depois nós estávamos rindo juntos. Após alguns anos, nós brigávamos por qualquer coisa, como se café era melhor do que chá, e ficávamos sem nos falar durante meses por causa disso”. Jim não parece ter saudade.
Como nunca foram queridos pela indústria, mantendo sempre o máximo de independência e distanciamento possível, o aniversário do Psychocandy passou em branco. Está programada apenas para o ano que vem uma reedição do álbum. A única mudança certa até agora é a exclusão de “Some Candy Talking”, faixa que não fazia parte do disco, incluída no álbum a partir de 1986 por insistência da gravadora.
Talvez então ele seja redescoberto, talvez seja adotado por uma nova geração e receba mais um pouco do reconhecimento que merece. O pacato Jim esquece a casa no campo por poucos segundos e viaja em direção ao passado, lembra do hype, das apresentações bombásticas, das músicas que marcaram mais vidas do que se pode contar, e conclui, calmamente: “Já faz vinte anos que lançamos esse disco e eu ainda estou aqui falando sobre ele com você. A maioria dos álbuns não dura vinte dias, imagina vinte anos. Isso deve significar alguma coisa”. Algumas vezes a modéstia devia ser considerada um pecado.
4 Comments:
Invertida, eu??
By Juliana Zambelo, at 11:47 AM
Li na revista esse texto. Muito bom. O Jesus será sempre uma banda q faz falta, não importa o cenário q vivemos...
By Paranoid Android, at 9:09 PM
Emo!
By Anônimo, at 10:54 AM
eu acho que esse é o melhor texto seu publicado na Bizz. ficou ótimo. parabéns de novo
By Olivia, at 12:38 PM
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